Carne, Metal e Tecno-Estética
Rui Matoso, setembro 2016
André Avelar, tem como ponto de partida conceptual para a sua obra, a relação complexa e antiga entre o corpo humano e a tecnologia, remetendo-nos para um imaginário híbrido e tecno-estético. Um horizonte imagético construido algures entre o universo ciborgue, a religião ou a (pré-)história, entre outros elementos culturais. Destas obras emergem múltiplas configurações da imagem, reunindo corpos, ossos, máquinas ou animais, que bem podem representar o ideal humano na sua complexa ligação ao mundo e à natureza, a extensão técnica das suas capacidades (próteses), e ao mesmo tempo a transubstanciação alquímica da matéria, algo que hoje poderíamos antever próximo das correntes conhecidas como tecnognose (1) e tecnoxamanismo (2).
As suas obras, suportadas em papel emulsionado, são maioritariamente projectos de criação de quimeras visuais partindo de um pressuposto assente no encontro improvável entre categorias antagónicas da figuração. Veja-se por exemplo, “The abolition of man”, onde a parte superior do torso da escultura clássica, David, de Miguel Ângelo, é agregada a partes de um corpo humano e a objetos oriundos da mecânica (motor). Neste caso, trata-se, também de nos ser facilitada uma certa compreensão daquilo a que nos referimos como tecnoestética (3), ou seja, de entender a necessidade pós-humana de ir além do entendimento clássico do belo, para aí acrescentar uma forma de fruição da técnica, onde as máquinas e os mecanismos comportam uma dimensão importante na percepção estética, e até mesmo na fruição erótica (4), do ser humano contemporâneo.
Estas fusões, contágios, choques ou entrelaçamentos assimétricos entre ícones de distintas culturas visuais e entre regimes técnicos de temporalidades diferentes, são afinal a base do entendimento das mediações e dos interfaces entre o técnico e o não-técnico, entre o humano e não-humano ou entre o vivo e não-vivo. É como se o artista quisesse instaurar, qual doutor Frankenstein pós-moderno, um laboratório de bioengenharia no seu atelier, pois a vida, agora desenhada pela engenharia genética, transformou-se num imenso estaleiro tecnológico. Ainda assim, e apesar dos desenvolvimentos recentes promovidos pela informática, a imaginação técnica já no Séc. 17 permitiu a Descartes descrever minuciosamente analogias maquínicas para a explicação do funcionamento do organismo humano, invocando autómatos de mola e autómatos hidráulicos, recorrendo assim às formas técnicas mais evidentes da sua época. Afinal, o que são os músculos senão cordas elásticas? O que é o ângulo ocular senão uma roldana?
Visto de uma outra perspectiva, na origem destas imagens está uma boa dose de refinada ironia, quer pelos títulos das peças, quer pela associação dissonante de ideias e figuras, veja-se por exemplo “A fantástica máquina de matar patos”, onde um esqueleto humano embala carinhosamente um pato, enquanto aponta para um aparelho que supostamente serve para matar aves. Noutra obra, “Overman”, encontramos o esqueleto do famoso filósofo Friedrich Nietzsche, ajoelhado perante um manequim com cabeça de robô, num acto de veneração risível, porquanto Nietzsche jamais se prostraria perante qualquer divindade antropomórfica, uma vez que o “Ubermensch” (pós-humano) só venera a vontade de potência para além de qualquer modulação religiosa.
Por outro lado, este mesmo processo de contaminação irónica inclui também a apropriação de imagens da história universal da arte, fazendo esbarrar uma figura feminina emanada do estilo pictórico do gótico tardio com uma engrenagem da época industrial (Jan van Eyck, em “Turn me on II”). Neste sentido, as séries de André Avelar integram-se numa hipotética continuidade do espírito derrisório dadaista, quer seja pela utilização específica da técnica de montagem/colagem, quer pela aproximação a um imaginário iconoclasta em constante colisão com a concretude do real.
1 http://www.revistas.univerciencia.org/index.php/famecos/article/view/310/241
2 https://tecnoxamanismo.files.wordpress.com/
3 Vide Simondon, G. (1982). On Techno-Aesthetics. PARRHESIA nº 14 (1-8))
4 Um exemplo deste erotismo técnico é dado pelo filme “Crash” (David Cronenberg, 1996).